Tomografia Computadorizada Axial
Autor: Pedro Luis Kantek Garcia Navarro- GAC
Em 1862, um ginasiano alemão com 17 anos, de nome Guilherme Roentgen, foi apanhado em uma daquelas armadilhas do destino: presenciara um colega desenhar uma caricatura ofensiva do diretor do ginásio. Note-se que o desenho era ofensivo no ponto de vista do diretor. Na visão dos alunos era o maior barato. O diretor, quando viu o desenho, embraveceu-se, subiu nas tamancas: quem cometera aquela ofensa? Ninguém se apresentou, mas por azar, o diretor soube que Guilherme sabia quem era o autor: Chamado às falas, teve diante de si uma escolha: ou dedurar o colega ou manter-se calado. Escolheu a segunda opção e foi expulso da escola. Da escola e do país, pois ao ser excluído do colégio não seria aceito por nenhum outro colégio alemão. Que remédio? O negócio foi se mudar para a Suíça e lá começar o curso de engenharia mecânica. Na Escola Politécnica de Zurique ele foi bem apagado, mas as rodas do destino estão sempre lá: Trabalhava nessa mesma escola o Dr. August Kundt, um dos mais famosos físicos teóricos da Europa. Kundt encantou-se por uma habilidade de Roentgen: embora fosse uma aluno meio medíocre, tinha uma capacidade imensa de produzir aparelhos físicos. Que funcionavam! Com madeira, vidro e algumas chapas de metal era capaz de construir qualquer engenhoca digna do professor Pardal. Começaram a trabalhar juntos e juntos seguiram por 3 universidades. Cada vez que Kundt era convidado para um novo posto, Roentgen o acompanhava. Aos 34 anos, já doutor em física teórica, este último abandonou o mestre e assumiu uma cátedra na Universidade de Giessen. Já era físico até a raiz dos cabelos, esquecera-se da engenharia.
Ele fazia medidas de radiações e uma de suas ferramentas era um tubo de Crookes, inventado em 1861 na Inglaterra, e que vinha a ser uma lampadona com cátodo e ânodo e no qual se fazia vácuo. No seu trabalho, usava fotografias, que nessa época eram embaladas uma a uma em estojos de madeira para sua proteção contra a luz. Um dia, deixou algumas dessas fotos virgens e seladas próximas ao tubo de Crookes enquanto trabalhava e quando foi usar as chapas em fotografias comuns, percebeu na revelação, um monte de manchas. Reclamou do fabricante dizendo que ele lhe mandara fotos meio-veladas. O fabricante retrucou dizendo que as chapas fotográficas estavam perfeitas quando saíram da fábrica.
O que Roentgen não sabia (mas já, já, ia descobrir) era que o tubo de Crookes gerava uma radiação invisível, que tinha a capacidade de ultrapassar madeira e que velava chapas fotográficas. Para quem não percebeu, está-se a falar de uma radiação que, quando descoberta, foi batizada por Roentgen de "Raios-X", sendo este "X" usado no mesmo sentido de "desconhecido", tal como quando dizemos em uma equação matemática x igual a alguma coisa.
No início foi uma mera curiosidade científica: um dispositivo que podia ser usado para fotografar coisas atrás de barreiras. Roentgen começou a estudar quais materiais bloqueavam os RX e percebeu que o melhor deles era o chumbo: uma fina película de chumbo impedia a passagem dos raios.
Em algum momento de dezembro de 1895, Roentgen segurava um cachimbo próximo a uma chapa fotográfica bombardeada por RX. Ao revelá-la, percebeu assustado que além do cachimbo uma mão de caveira segurava o dito cujo: a mão era a dele, e ele estava enxergando os próprios ossos. Imediatamente percebeu o alcance daquela descoberta: Agora seria possível olhar para dentro do corpo sem precisar usar facas e serras.
Querendo convencer o mundo, convidou a mulher, Bertha Roentgen -- que até então nada sabia -- a segurar uma chapa não velada, que foi devidamente bombardeada. Quando a chapa foi revelada, estava lá a mão da mulher e no dedo anular um anel. Foi pela jóia que a mulher se convenceu que era a sua mão com os seus ossos. Veja esta foto de 1895 mais abaixo, no texto. O cientista esperava uma reação de júbilo e alegria, mas deu zebra, foi um anticlímax: a mulher ficou enfurecida, achou uma invasão de privacidade o marido olhar assim, "dentro" dela. Aliás, nos primeiros anos dos RX, a reação foi a pior possível, onde já se viu devassar as entranhas das pessoas.
Em pouco tempo, coisa de meses, a novidade se espalhou, Roentgen foi aclamado como um benfeitor na humanidade . Ele ganhou o primeiro Nobel de física em 1901. Fêz duas coisas que nunca mais alguém teve a coragem de fazer: Recebeu o prêmio em silêncio, sem discursar, já que era tímido, e deixou o valor do prêmio para a Universidade onde trabalhava. Com isto encerra-se o primeiro capítulo desta nossa história: o surgimento do Raio-X. Quem quer que tenha passado 15 minutos na sala de espera da clínica de Fraturas do alto da XV pode bem avaliar o que significou esta descoberta para o nosso dia-a-dia.
Em 1972, Godfrey Hounsfield, um programador britânico, trabalhando junto com um neurorradiologista, conseguiu mostrar as partes internas de um cérebro humano. Foram esses dois que batizaram o processo que acabavam de inventar com o nome pomposo de tomografia computadorizada axial transversa. Vem a ser uma técnica para reconstruir imagens bi-dimensionais de seções transversais de pacientes a partir de um conjunto de fluxos de RX unidimensionais. As vantagens de tal facilidade são óbvias: ao invés de examinar vagas sombras em um fotograma de Raio-X convencional, médicos podem examinar alterações patológicas na anatomia com o mesmo grau de claridade que teriam se tivessem cortado o paciente em 2. Embora pareça uma máquina de Raio-X, não se enganem: o que tem lá dentro é um computador. Até tem um RX, mas este é acessório ao computador. E, onde há computador, há programas e onde há programas, há algoritmos: pronto. Estamos na nossa praia, demorou mas chegou.
Na figura abaixo, um exemplo de tomografia da base do crânio.
O algoritmo de reconstrução é fácil de colocar e entender. Para fazer isto vamos pensar em uma seção transversal de um corpo humano. Imagine também um conjunto de emissores de Raio-X, colocados pararelos em uma estrutura rígida que gira em um eixo estabelecido no centro do corpo humano. No lado oposto (ultrapassado o corpo) estão os detectores do Raio-X.
À medida em que a geringonça gira, inúmeros conjuntos de Raios-X vão sendo tomados. Para uma determinada posição angular (digamos horizontal) tem-se um conjunto de x valores de atenuação. O valor x é a quantidade de emissores e detetores, e a atenuação é a diminuição da potência do Raio-X emitido numa ponta e recebido na outra após passar pelas estruturas do corpo que está sendo estudado.
Por exemplo, na horizontal, os raios inferiores, têm de que atravessar a coluna (supondo que o paciente esteja deitado de costas), ao passo que os raios superiores ou não atravessam nada, ou apenas alguma gordura (isso para os mais gordinhos). Quando a estrutura estiver tirando Raios-X na vertical, a coluna do paciente atenuará os raios do meio do conjunto.
Os detectores não tiram fotografias, ao invés, eles mandam sinais elétricos proporcionais à potência do Raio-X recebido diretamente para um computador. Este, de posse da informação referente ao ângulo de tomada e dos valores de todos os sensores, vai reconstituindo do corpo que está sendo "cortado".
Vamos exemplificar o caso, usando uma instância bem simples do problema. Seja uma caixa retangular que contém um cubo sólido dentro dela. Não se conhecem as dimensões nem a posição do cubo. Fazendo 3 tomadas a 0, 45 e 90 graus, como se vê a seguir.
São feitas 3 tomadas de RX. A primeira, representada por (A), atravessa a caixa no sentido longitudinal e sensibiliza sensores colocados após a caixa em A. A segunda, atravessa a caixa fazendo 45 graus com as arestas da caixa e sensibiliza os sensores em B. Finalmente, o terceiro fluxo atravessa a caixa de maneira transversal.
Supondo que tanto a caixa quanto o objeto cúbico absorvem algum RX, e supondo um emissor linear percorrendo toda a área de sensoreamento, paralelo aos eixos A, B e C, poderíamos ter as seguintes leituras nos sensores:
Note-se que na visão lateral (A), os primeiros e últimos detetores (bem à esquerda e bem a direita) não são atenuados, chegam com a mesma potência com que saíram, isto é não atravessaram nenhuma estrutura. Note que na visão a 45 graus, quando o fluxo começa a cruzar a caixa ele cresce, chega a um máximo (que corresponde à diagonal do cubo) e em seguida diminui no mesmo ritmo.
A técnica mais simples de reconstrução é a chamada "back projection", e todas as demais que vieram depois são melhoramentos e variações desta.
Esta técnica tem uma formulação matemática bem compacta:
Essa fórmula pode ser lida como:
P é a atenuação medida no sensor t, posicionado em um ângulo q em relação ao eixo horizontal. x,y são as coordenadas dos pontos da imagem e d é um filtro que tem a função de só considerar os pontos que estão no caminho do fluxo t de RX.
Esclarecendo melhor a função de d , é uma função simples que vale 1 quando o ponto x,y está no caminho do fluxo t e vale 0 quando não está. Para quem se lembra um pouco de geometria analítica, esta fórmula já deve ter sido vista. De fato,
vem a ser a equação paramétrica da reta que atravessa os eixos no ponto t e com inclinação .
Como o que se tem é a atenuação (medida pelos sensores) e o que se quer obter é o mapa de todos os x,y (ou seja, a imagem do corpo que está sendo "cortada"), há que se tomar a função inversa àquela acima e tem-se:
Por favor, leitor, não desista: a fórmula acima assusta, mas não morde. Senão, vejamos: O ponto x,y da imagem é igual à somatória das atenuações, obtidas em todas as medidas angulares (variação de q ), para todos os fluxos de RX (variação de t), mas apenas para os pontos que estão no caminho do fluxo t (filtro d ). Foi tão ruim assim?
Para encerrar o capítulo matemático desta história, basta converter a fórmula acima para o mundo real. Não podemos nos esquecer que o computador não é uma máquina analógica, contínua. Ele é digital, que neste sentido é sinônimo de discreta. Assim, as integrais precisam ser convertidas em somatórios, e a fórmula final fica:
Escrevendo isso na forma bem mais amigável de um programa, e supondo que queiramos reconstruir uma imagem de LIN por COL pixels, a partir de tomogramas individuais temos:
Para concluir este passeio, vamos tentar reconstruir um objeto 2D, colocado no meio de uma treliça 11 x 11. Nós estamos vendo o objeto de cima, mas a tomografia se fará apenas a partir de atenuações laterais. O objeto vai ser representado por 11 níveis de "tinta". O nível 0, indica que não há nada aí, e níveis crescentes indicam que o objeto é cada vez mais espesso nesse lugar.
Seja a seguinte configuração inicial:
Correspondendo à seguinte distribuição de valores:
.00 .00 6.00 .00 .00 .00 .00 .00 .00 .00 .00
.00 .00 6.00 .00 .00 .00 .00 .00 .00 .00 .00
.00 .00 6.00 .00 .00 .00 .00 .00 .00 .00 .00
.00 .00 6.00 .00 .00 .00 .00 .00 .00 .00 .00
.00 .00 6.00 .00 .00 .00 .00 .00 .00 .00 .00
10.00 10.00 6.00 10.00 10.00 10.00 10.00 10.00 10.00 10.00 10.00
.00 .00 6.00 .00 .00 .00 .00 .00 .00 .00 .00
.00 .00 6.00 .00 .00 .00 .00 .00 .00 .00 .00
.00 .00 6.00 .00 .00 .00 .00 .00 .00 .00 .00
.00 .00 6.00 .00 .00 .00 .00 .00 .00 .00 .00
.00 .00 6.00 .00 .00 .00 .00 .00 .00 .00 .00
Trata-se de uma cruz de material, sendo a haste horizontal de material que absorve mais o RX (representado por 10) e a haste vertical na coluna 3, de um material mais "leve", já que está representado apenas por 6. Os demais pontos não contêm nada (valor 0).
O resultado da tomografia em 2 ângulos (0 e 90), apresenta 11 níveis de absorção para cada ângulo, e gera a seguinte configuração:
.00 .55 .55 .55 .55 .55 9.64 .55 .55 .55 .55 .55
90.00 .91 .91 6.00 .91 .91 .91 .91 .91 .91 .91 .91
E a reconstituição da configuração original a partir desta tomografia é:
com a seguinte configuração:
.73 .73 3.27 .73 .73 .73 .73 .73 .73 .73 .73
.73 .73 3.27 .73 .73 .73 .73 .73 .73 .73 .73
.73 .73 3.27 .73 .73 .73 .73 .73 .73 .73 .73
.73 .73 3.27 .73 .73 .73 .73 .73 .73 .73 .73
.73 .73 3.27 .73 .73 .73 .73 .73 .73 .73 .73
5.27 5.27 7.82 5.27 5.27 5.27 5.27 5.27 5.27 5.27 5.27
.73 .73 3.27 .73 .73 .73 .73 .73 .73 .73 .73
.73 .73 3.27 .73 .73 .73 .73 .73 .73 .73 .73
.73 .73 3.27 .73 .73 .73 .73 .73 .73 .73 .73
.73 .73 3.27 .73 .73 .73 .73 .73 .73 .73 .73
.73 .73 3.27 .73 .73 .73 .73 .73 .73 .73 .73
Note que o desenho é quase igual (já que os ângulos coincidiram com as hastes da cruz: esperteza nossa :-)...), mas observando a matriz numérica de reconstituição percebem-se valores diferentes de 6 e 10, embora nas mesmas posições da figura original.
Agora, fazendo a tomografia e a reconstituição com 10 ângulos (0, 18, 36, 54, 72, 90, 108, 126, 144 e 162 graus), tem-se como resultado:
Com a seguinte configuração:
.00 .00 .45 .45 1.36 1.36 1.73 .36 1.09 .00 .00
.00 .00 .45 .45 1.36 1.36 1.73 .36 1.09 .00 .00
.45 .45 .91 .91 1.82 1.82 2.18 .82 1.55 .45 .45
.45 .45 .91 .91 1.82 1.82 2.18 .82 1.55 .45 .45
1.36 1.36 1.82 1.82 2.73 2.73 3.09 1.73 2.45 1.36 1.36
1.36 1.36 1.82 1.82 2.73 2.73 3.09 1.73 2.45 1.36 1.36
1.73 1.73 2.18 2.18 3.09 3.09 3.45 2.09 2.82 1.73 1.73
1.09 1.09 1.55 1.55 2.45 2.45 2.82 1.45 2.18 1.09 1.09
.36 .36 .82 .82 1.73 1.73 2.09 .73 1.45 .36 .36
.00 .00 .45 .45 1.36 1.36 1.73 .36 1.09 .00 .00
.00 .00 .45 .45 1.36 1.36 1.73 .36 1.09 .00 .00
Para concluir, pode-se relembrar que este caso acima listado é apenas didático. A resolução 11x11 é muito pobre, e as imagens não sofreram nenhum tratamento (transformadas de Fourier, limiarização, regularização), mas ele aponta bem para a simplicidade e poder do conceito original. Da próxima vez que você se vir dentro daquele tubo que gira fazendo barulho, enquanto sua cabeça é esquadrinhada, fique com medo apenas do que poderá aparecer lá dentro. A máquina não deve assustar mais.
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